Definida pela escritora Nélida Piñon como uma poeta que tem "a linguagem em chamas", a poeta, atriz, escritora, jornalista e professora Elisa Lucinda disse ao Estação Sabiá: "Tudo o que eu ganhei na vida foi a poesia que me deu." Ativista da palavra, Elisa, que é capixaba, foi para o Rio com vinte e poucos anos para ser atriz, mas a poesia, que já fazia morada nela, a capturou de vez. Precursora da poesia falada, do poema dito de forma coloquial, e não declamada, Elisa levou o poema para o espaço aberto e ensinou muita gente a dizer e a fazer poesia.
Criou a Casa Poema, onde faz workshops, ensina a "poesia falada". Faz um trabalho de empregabilidade de pessoas trans, faz o Versos da Liberdade, que leva poesia a meninos infratores e onde tem o programa Palavra de Polícia, que leva policiais a compreender e se sensibilizar com a força da poesia. Cidadania é o mote do seu trabalho e o objetivo é mostrar o poder da palavra. "A vida dos mais frágeis acaba ficando muito perto da violência, sua camada de proteção da cidadania é muito fininha, então torna-se urgente ensinar a essas pessoas o poder da palavra para que se expressem com a cabeça erguida."
Elisa diz que sempre quis falar para as pessoas do seu tempo, e agora muitos jovens conhecem seu trabalho. "Muito do que sempre falei está sendo compreendido agora".
Inscreva-se na TV 247 e assista à íntegra da entrevista.
O POEMA DO SEMELHANTE
O Deus da parecença que nos costura em igualdade, que nos papel-carboniza em sentimento que nos pluraliza que nos banaliza por baixo e por dentro, foi este Deus que deu destino aos meus versos, Foi Ele quem arrancou deles a roupa de indivíduo e deu-lhes outra de indivíduo ainda maior, embora mais justa. Me assusta e acalma ser portadora de várias almas de um só som comum eco ser reverberante espelho, semelhante ser a boca ser a dona da palavra sem dono de tanto dono que tem. Esse Deus sabe que alguém é apenas o singular da palavra multidão Eh mundão todo mundo beija todo mundo almeja todo mundo deseja todo mundo chora alguns por dentro alguns por fora alguém sempre chega alguém sempre demora. O Deus que cuida do não-desperdício dos poetas deu-me essa festa de similitude bateu-me no peito do meu amigo encostou-me a ele em atitude de verso beijo e umbigos, extirpou de mim o exclusivo: a solidão da bravura a solidão do medo a solidão da usura a solidão da coragem a solidão da bobagem a solidão da virtude a solidão da viagem a solidão do erro a solidão do sexo a solidão do zelo a solidão do nexo. O Deus soprador de carmas deu de eu ser parecida Aparecida santa puta criança deu de me fazer diferente pra que eu provasse da alegria de ser igual a toda gente Esse Deus deu coletivo ao meu particular sem eu nem reclamar Foi Ele, o Deus da par-essência O Deus da essência par. Não fosse a inteligência da semelhança seria só o meu amor seria só a minha dor bobinha e sem bonança seria sozinha minha esperança.
Elisa Lucinda
Safena
Sabe o que é um coração
amar ao máximo de seu sangue?
Bater até o auge de seu baticum?
Não, você não sabe de jeito nenhum.
Agora chega.
Reforma no meu peito!
Pedreiros, pintores, raspadores de mágoas
aproximem-se!
Rolos, rolas, tinta, tijolo
comecem a obra!
Por favor, mestre de Horas
Tempo, meu fiel carpinteiro
comece você primeiro passando verniz nos móveis
e vamos tudo de novo do novo começo.
Iansã, Oxum, Afrodite, Vênus e Nossa Senhora
apertem os cintos
Adeus ao sinto muito do meu jeito
Pitos ventres pernas
aticem as velas
que lá vou de novo na solteirice
exposta ao mar da mulatice
à honra das novas uniões
Vassouras, rodos, águas, flanelas e cercas
Protejam as beiras
lustrem as superfícies
aspirem os tapetes
Vai começar o banquete
de amar de novo
Gatos, heróis, artistas, príncipes e foliões
Façam todos suas inscrições.
Sim. Vestirei vermelho carmim escarlate
O homem que hoje me amar
Encontrará outro lá dentro.
Pois que o mate.
...
Elisa Lucinda
Aviso da lua que menstrua
https://www.youtube.com/watch?v=SkfeGN9kzFM&feature=emb_logo
Moço, cuidado com ela! Há que se ter cautela com esta gente que menstrua… Imagine uma cachoeira às avessas: Cada ato que faz, o corpo confessa. Cuidado, moço Às vezes parece erva, parece hera Cuidado com essa gente que gera Essa gente que se metamorfoseia Metade legível, metade sereia. Barriga cresce, explode humanidades E ainda volta pro lugar que é o mesmo lugar Mas é outro lugar, aí é que está: Cada palavra dita, antes de dizer, homem, reflita.. Sua boca maldita não sabe que cada palavra é ingrediente Que vai cair no mesmo planeta panela. Cuidado com cada letra que manda pra ela! Tá acostumada a viver por dentro, Transforma fato em elemento A tudo refoga, ferve, frita Ainda sangra tudo no próximo mês. Cuidado moço, quando cê pensa que escapou É que chegou a sua vez! Porque sou muito sua amiga É que tô falando na “vera” Conheço cada uma, além de ser uma delas. Você que saiu da fresta dela Delicada força quando voltar a ela. Não vá sem ser convidado Ou sem os devidos cortejos.. Às vezes pela ponte de um beijo Já se alcança a “cidade secreta” A atlântida perdida. Outras vezes várias metidas e mais se afasta dela. Cuidado, moço, por você ter uma cobra entre as pernas Cai na condição de ser displicente Diante da própria serpente Ela é uma cobra de avental Não despreze a meditação doméstica É da poeira do cotidiano Que a mulher extrai filosofando Cozinhando, costurando e você chega com mão no bolso Julgando a arte do almoço: eca!… Você que não sabe onde está sua cueca? Ah, meu cão desejado Tão preocupado em rosnar, ladrar e latir Então esquece de morder devagar Esquece de saber curtir, dividir. E aí quando quer agredir Chama de vaca e galinha. São duas dignas vizinhas do mundo daqui! O que você tem pra falar de vaca? O que você tem eu vou dizer e não se queixe: Vaca é sua mãe. de leite. Vaca e galinha… Ora, não ofende. enaltece, elogia: Comparando rainha com rainha Óvulo, ovo e leite Pensando que está agredindo Que tá falando palavrão imundo. Tá, não, homem. Tá citando o princípio do mundo!
...
Nenhum comentário:
Postar um comentário